terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sonho (1) - Vozes, ecos além da compreensão

O gramado se espalhava por toda a parte, acariciado pelo vento sem fim. Uma brisa e, logo após, uma corrente demorada de ar rápido que lhe abafava os ouvidos. No balançar do passo do cavalo, seus olhos subiam e desciam no horizonte, sem decifrar as minúcias da paisagem. Estava outra vez no absorto de uma mente sem ânimo. Haviam árvores que ajudavam a espalhar não só o verde, como também outras cores pelas suaves inclinações dos morros enquanto o azul claro salpicado de branco tingia o céu num belo dia.
A tranquilidade penetrava em sua alma por alguns instantes até que o som do vento sumiu. Era hora da brisa voltar. Foi só então que os ecos tocaram suas orelhas e sua mente, quase adormecida, se alertou para o ocorrido a sua volta. Deslizando os olhos sobre o panorama, encontrou os mesmos seis homens numa conversa frenética. O mais jovem era o mais animado, gesticulando bastante e elevando a voz sempre que podia. Em seguida, um dos mais velhos o encarava cético e sua voz murchava. Um lamento veio depois, um pequeno gemido e mais palavras sem significado.

Palavras. Quantas ele ouvira nas últimas horas? Dezenas, talvez centenas. Julgou que estava próximo das milhares somente pelo jovem energético e seus gestos infindáveis. Sorriu sem que ninguém notasse, ansiava por aquilo fazia tempo, dias, desde o fim de sua última batalha. Concluíra aquilo somente para desfalecer novamente. Aquelas vozes eram ecos além da compreensão, eram o código daqueles que o perseguiram, a língua do desespero dos seus sonhos, dos esboços dos rostos em chamas, em agonia, consumidos pela podridão que emergia da alma de outros homens. E mulheres e crianças e idosos. Todos assentindo distantes as dores de terceiros, todos esperando pela transformação de pesadelo em salvação.
Com as forças obtidas pelo que lhe deram de comer e beber, arregalou os olhos e fitou as expressões daqueles que o levavam. Sentiu-se um escravo, refém da própria sorte. A mesma que o abandonara desde a última batalha.

"Estarei a salvo amanhã?", pensou. E de novo não respondeu. O coração acelerou sem que percebesse, já que toda sua concentração estava nos ecos além da compreensão. "Oh!", pensou por reflexo ao reconhecer um som similar. "Aquilo foi um 'ann'?", em sua língua poderia significar em, sobre, de. E também significava silêncio. Um aviso? Notara que sua boca estava aberta, com sede de conversa, de diálogo, de compreensão. E então calou-se antes de falar, fechou abruptamente e quase mordeu a própria língua. Nem teria reparado na dor, só queria fugir o quanto antes de qualquer descoberta, fosse dele ou daqueles que o levavam.
Seus olhos cruzaram com os de outro homem, um dos mais velhos, sérios e calados. Esse observava demais, demais. Gelou por dentro. "Ele descobriu!".
A pergunta veio em seguida e ele não entendeu. Não poderia, estava em outra língua. Uma que jamais ouvira antes, a não ser num passado próximo, mas não tivera a menor intenção de aprender. Aprendeu, no entanto, que o fio da espada era rápido e gelado, e silenciava tão bem quanto as noites escuras que lhe tomaram a rota certa para sua terra maldita.

Grunhiu em resposta, mais um eco além da compreensão, até para si mesmo. Todos os olhares se centraram nele e seu corpo se encolheu, incapaz de lutar contra a perigosa atenção daqueles homens. Então mais palavras ecoaram ao seu redor, sem sentido algum. E com elas o vento soprou forte e lançou para longe qualquer oportunidade de reconhecer outra palavra. Para sua cabeça medrosa, todas as bocas diziam "matem-no! Matem-no!". A conversa incessante progredia e o volume das vozes em conjunto só aumentava a confusão. Sentiu o desespero e as lágrimas emergindo de sabe-se lá onde dormiam.

Silêncio. Os homens se aquietaram e, com eles o vento. Junto ao vento, seus pensamentos. A dúvida pairava tão fundo em sua alma que nenhuma idéia do que se passava ocorrera. Haveriam escolhido seu destino? Percebido suas origens? Ele sequer tinha dito algo em sua língua natal? Não sabia nada, nem falar. Não poderia perguntar ou entender a resposta. Só restava esperar.

Esperou mais três dias, dividindo o pão e a água com os viajantes. E quanto mais o tempo avançava, mais reconhecia os desastres da terra, os danos ao solo. Muito daquilo foi provocado por chamas que ele sabia a origem. Era uma das poucas coisas que sabia daquele lugar. Entretanto, ainda assim, não sabia onde estava. Os homens emudeceram no último dia de viagem, principalmente o jovem, estupefato com as consequências para sua terra. A tristeza estava em seu olhar. E ele soube que o jovem jamais perdoaria se encontrasse algum responsável por aquilo. Talvez esse momento não estivesse longe, afinal.
Assim, vislumbrou ao longe a sombra de uma vila arrasada pelas chamas da guerra. Esse era o seu destino, o lugar onde as cicatrizes da terra decidiriam seu castigo?
Não saberia dizer...

2 comentários:

Fonftka disse...

Continuou! =D

A gente vê a história acontecendo REALMENTE através dos olhos do protagonista na maior parte do tempo, e entendemos tanto quanto ele também, isso é muito legal e diferente! Devo dizer que temo pelo que vai acontecer com ele... mas só posso ficar imaginando mesmo, nada com muita consistência. Porque esse texto parece que vai pra onde quiser, sozinho, e nem sua mão vai controlá-lo.

É lindo e diferente, Arty. E continua muito bom de ler!

Continue! =D

Tiny Tanuki disse...

Adorando muito!

Espero que tenha muitas partes essa história xD pq ainda quero ler muito.

Como sempre, vc tá escrevendo muito bem, com um estilo diferente, muito bom. Adoro tudo que vc faz ^^

Podemos esperar um próximo post já né? *-*