sábado, 13 de novembro de 2010

Sonho (1) - Aquilo que ficou pra trás

Era estranho. Tudo. O ar, a água, a comida. As pessoas que vagueavam por toda a parte na vila, ora expressando inconscientemente toda a sua determinação em viver, sua satisfação pela sobrevivência à guerra, ora revelando um rosto lamentador, tristonho, revirando o chão com um olhar pesado. Também era estranho as sombras que se mexiam sem parar no quarto, sombras que ele não estava mais acostumado a ver. Aquilo era por causa da fogueira, da lamparina, do vento que soprava baixinho passando pela fresta da janela e penetrando no quarto, fazendo muito do que ali estava se mover. "Ah! O luar! Você também é responsável por isso!", pensou ele.
Era estranho estar naquela terra estrangeira e, ele sendo agora um simples viajante, ter tanto medo do que ocorria onde seus olhos não alcançavam. A cicatriz da batalha era muito profunda, e toda vez que uma paz surgia entre os inúmeros embates sem fim, descobria mais tarde que não passava de uma mentira.
A paz não existia.

Era por isso que seus olhos ainda estavam tão abertos, muito mais do que estavam mais cedo, ou nos outros dias de viagem, aqueles junto aos homens. De alguma forma misteriosa seu corpo agora parecia não estar satisfeito com a idéia da morte. Talvez fosse o medo de não saber como e quando ocorreria, não se ocorreria. Talvez alguém estivesse esperando calmamente ele adormecer para tirá-lo a vida. Isso poderia ser agradável, se não percebesse que o sonho o levaria direto para a morte. O problema estava em simplesmente não entender nada em meio à dores, e puxões, e machucados. E sangue. "Sim, o sangue", sua mente repetiu. A palavra quase pulou pela boca. Essa ele lembrava, tinha certeza de como dizer. Seriam capazes de entendê-la caso dissesse? Não tinha certeza. Mas ela existia e o perseguia desde muito. Desde o começo da guerra.
"Quanto tempo faz?", se perguntou novamente. Queria saber quando a guerra começou, mas não conseguia se lembrar. "Quando comecei a lutar nela?", essa era mais precisa, não mais que um ano, talvez. Não fazia muito tempo que abandonou sua terra maldita para buscar uma melhor condição de vida, ainda podia se lembrar dos rostos das crianças de sua terra. Mas pensar naquilo o fazia rever também o rosto de suas vítimas. E lembrar-se das vítimas o fazia pensar que também seria uma. Logo, logo.
Conseguia ouvir o incessante crepitar da fogueira no cômodo ao lado. Era angustiante. Os berros, a correria, a dificuldade. Tudo isso ainda morava na sua cabeça. A guerra inteira era um trauma, principalmente sua última batalha. Seu coração batia mais rápido agora, o medo crescendo cada vez mais, uma mistura das lembranças do sofrimento das pessoas e uma associação de tudo aquilo que viu acontecer com outras pessoas também acontecer com ele. A noite parecia interminável. Todo barulho exterior parecia o de alguém se aproximando. "O assassino!", pensava. Ouviu uma voz em outro cômodo da casa. "Estão se aproximando!". Ele não tinha forças para se levantar, por isso olhava a porta o tempo inteiro agora, esquecendo a janela que permanecia pouco acima da sua cabeça, um excelente lugar para alguém iniciar um ataque.
Depois de um tempo, ouviu passos e, por fim, viu a maçaneta se mexer. Tinha certeza de que era o seu fim, de que aconteceria naquele momento, justamente quando pensavam que estaria dormindo, porém a porta não abriu e ninguém entrou. Em momento algum, os moradores daquela pequena vila invadiram seu quarto. E todo o esforço que ele fazia para se manter alerta exauriu sua mente mais do que pôde notar, portanto, caiu no sono sem perceber, também.

Seu sonho começou exatamente daquela maneira, no quarto, deitado, esperando seu julgamento chegar. Então, junto com os pensamentos de sua terra, a casa se abriu e o sol apareceu. Era um bonito amanhecer com as crianças correndo para todos os lados. Então veio o chamado para a guerra, e ele foi, junto de muitos, de milhares. Era a hora de lutar. Disseram-lhe muitas coisas: instruções, como manusear suas armas, o que fazer numa batalha, como responder seus superiores. Disseram-lhe o que fazer em cada uma de suas lutas, como fazer para que o todo sobrevivesse. Era a hora de lutar, sempre era. Mesmo quando deitava, ou tentava dormir, ou dormia tentando manter-se acordado, a guerra vinha, a batalha o perseguia. O inimigo era feroz, por isso, ele lutava.
Cada uma de suas primeiras vítimas passou diante de seus olhos. Homens e mais homens. A maioria teve sua imagem gravada em meio a brados, mas não os de vitória. Ele também se lembrou de que não era forte, nem fraco. Não era herói, nem corajoso, por isso sempre esteve junto dos soldados e nunca foi posto em cargos mais importantes. Também nunca fez parte das manobras estratégicas de seu exército. Ou salvou um oficial.
Não sabia, mas isso foi o que o fez sobreviver. No entanto, pensava não só nos guerreiros que matou, mas também nos inocentes. Nas crianças que nenhuma arma em suas mãos não atravessou, mas que seu coração, ainda que relutante, deixou serem mortas ou queimadas nos ataques de seu exército. Ele não tinha coragem alguma, nem para parar a guerra, nem para mergulhar nela e crescer por isso. Tudo que fez foi aceitar o que viu, o que fez, o que sofreu. E agora tentava aceitar seu destino como único sobrevivente e prisioneiro do povo que fez tanto sofrer.

O sonho o levou para sua última batalha. Toda a tropa onde parecia confiante. Não era pra menos, aquela era a última batalha. Estavam marchando para a capital estrangeira, em busca do último refúgio do governante daquela maldita terra. A guerra estava para acabar, finalmente. Ele batia forte contra o peito, lutando contra seus sentimentos que o esmagavam. Estava com muito, muito medo. De morrer, e seu exército vencer. De morrer, e seu exército perder. Desejava de todo coração não morrer e vencer, mas nenhuma das alternativas aconteceu. Tudo foi oposto do que previram, não só ele, mas todos do exército. Seu povo sucumbiu em armadilhas atrás de armadilhas, em falhas aparentemente impossíveis, em vantagens inimigas nunca antes vistas.
Talvez tudo aquilo fosse apenas um ataque em força total de um povo desesperado, mas não importava. Tudo havia acabado. Seus companheiros, a maioria esmagadora mais forte do que ele, morreram. Todos. E ele viu isso acontecer aos poucos. Cercados aqui, atropelados ali, queimados, esquartejados, destruídos. Era apenas o pior para cada um deles, exceto para ele.
Foi naquele momento que passou de soldado para viajante, ignorando as ordens e fugindo, junto de todo o restante do exército. Não soube explicar, não tinha idéia de quantos poderiam ter conseguido a mesma proeza que ele, mas conseguiu sobreviver. Era um milagre fugir de uma batalha perdida como aquela. Viu incontáveis de seus conterrâneos morrerem na mesma tentativa. Tudo era frustrante.
Por fim, viu-se sozinho, em silêncio quebrado por lágrimas e temores, numa terra totalmente estrangeira. O caminho para casa? Ah, esse ele fez durante toda a campanha de guerra, era só correr ao contrário agora. Mas quantos de seus inimigos estariam pelo caminho? Não sabia, não sabia mais nada. A confusão lhe tomava com cada vez mais intensidade, a ansiedade aumentava e não tinha mais ninguém que pudesse ajudá-lo. Estava inteiramente só numa maldita terra que nada de bom lhe trouxe. Memórias ruins, pesadelos, fome, dores. "Eu quero voltar pra casa!", pensou inúmeras vezes, gritando para o seu próprio coração despedaçado. Caminhou por muito tempo até ver outros rostos, e agora que finalmente conseguiu, esperava sua morte apenas.

Passou toda a noite se revirando, pensando em seu tenebroso passado recente. Aquilo que ficou pra trás era o foco dos seus sonhos, e ele não conseguia enxergar nada para o seu futuro, aquilo que o aguardava. À sua frente, pensava, restava apenas um único destino: a morte. Porém, desde que declarou sua sentença de morte, tudo que aconteceu foi um prolongamento de sua vida sem sentido. Outros homens tiveram tanta mais garra, mais vontade, coragem e ferocidade. Por que ele, um covarde, teria escapado? Por que o destino permanecia prolongando sua vida? Isso sequer passava em sua cabeça.

Era chegada a alvorada, as sombras da noite já haviam ido embora e seu sono não se tornava mais tranquilo. Ainda assim, ele dormia, esperando uma perseguição incansável dos fantasmas do seu passado. Para os seus olhos, a realidade não passava de miragens.

2 comentários:

Tiny Tanuki disse...

Esse foi grande *-*

Esses posts me fazem lembrar o quão horrivel é uma guerra e como ela pode acabar com a vida de várias formas.. imagina como fica a mente de alguem que lutou numa guerra igual esse cara? Acho que a paranóia, o medo, a dor e tantas outras coisas permanecem pra sempre, fora os frequentes pensamentos de " por qual motivo eu sobrevivi?" ... alguém que passa por isso vai ser sempre mutilado, seja fisicamente ou psicologicamente.

Você consegue passar perfeitamente as emoções do personagem *-*
Quero saber da história dele, tudo ainda é um mistério, até o nome xD

Fonftka disse...

É isso... XD Não me importo de não saber o nome dele, não nesse tipo de narração. Não é que não precisa revelar também UAHUAHAUHA Mas sinto o foco de tudo em outro lugar mesmo...

Esse realmente foi bem maior e mais denso, só que devorei o texto rapidinho, então continua ótimo de ler. Também penso como a Karla, deu pra passar perfeitamente a sensação que ele carrega consigo depois de viver uma guerra e não se acostumar nem um pouco com ela. Esse efeito me lembrou alguma coisa de IHH... mas não lembro exatamente o que agora. Não tinha um tipo de "febre da guerra" lá? Bom, sei lá. XD

Demorei séculos pra ler este aqui, mas feito! Espero que não demore tanto para prosseguir, quero ver que tipo de surpresas ele vai ter (ou não) quando voltar a abrir os olhos. Se for algo bom é possível que ele pense que ainda está sonhando. XD E coisas boas parece que o farão sofrer bem mais que as ruins, no estado em que está.

"Continuar vivo"... acho que os motivos para isso se mostram para nós todos os dias de maneiras muito diferentes. Será que ele vai encontrar algum motivo?