sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sonho (1) - Marca

Passado havia muitas coisas diante de seus olhos em todos os seus sonhos daquela noite. Muito de sua história estivera representada ali, pois dela ele não conseguia fugir. Entre tantas coisas que o assolaram no sono, a última - e também que ficaria mais tempo em sua lembrança após acordar - era uma imagem inicialmente borrada, difícil de reconhecer, mas que logo tomou uma forma conhecida. O desenho do sol era a marca de seu povo, talvez por serem tão castigados por ele que não sabiam mais separá-lo de suas vidas. O sol também serviria como mensagem para os outros povos, mostrando o que aconteceria num confronto direto entre eles. E assim foi, pois as chamas de seu exército consumiram as terras estrangeiras onde aquele simples homem, ex-soldado, estava agora.
A luz matinal cobriu o desenho de seu povo e apagou-o completamente, fazendo assim o viajante acordar. O silêncio parecia imperar, e nem as aves cantavam naquela manhã. Seria estranho, incômodo, perceber isso àquela altura de sua viagem, mas nos locais onde a guerra havia passado só o vento e os corvos serviam de companhia. Portanto estava acostumado ao silêncio tão bem quanto estava acostumado aos sons dos animais à sua volta. Nenhum deles lhe trazia paz, entretanto. A presença e as vozes das pessoas também não. Aliás, dentre todos os barulhos, aqueles feitos por humanos são os que mais incomodavam-no. Ele não sabia o que esperar deles, e não sabia o que esperar de si mesmo. Não havia nada a ser feito ali, concluiu para si mesmo.

Permaneceu na cama por um bom tempo, primeiro deitado, olhando o teto de madeira e sentindo o cheiro de queimado à sua volta. Não sabia se vinha da janela ou da fresta da porta, mas tanto a fogueira acesa por toda a noite quanto a terra assolada de toda a vila poderiam ter aquele cheiro. "Não importa", pensou, passando a sentar-se na cama e meditar. Sobre a vida, sobre a morte, sobre suas dores. Era uma rotina já, pensar nessas coisas. Não tentava achar uma saída, nem concluir nada. Não esperava encontrar resposta alguma, eram apenas pensamentos desordenados que vagavam permanentemente em sua alma. Ele não saberia evitá-los mesmo se quisesse.
Foi então que entraram em seu quarto quando ele ainda estava meditando. Mesmo a quebra do silêncio não o despertou. Aos poucos notou a presença dos estranhos e não se assustou com eles, apenas ergueu os olhos para ver os dois homens no quarto que não era seu. A seriedade pairava no ar, e mais palavras foram proferidas sem que ele entendesse alguma delas. Mas isso não importava, ele conseguia deduzir do que se tratava. Colocou-se de pé e estava pronto para seguir os homens onde quer que fossem, até se o levassem para sua morte. Um deles se virou e saiu da sala. O viajante continuou a olhar para o que ficou, entendendo assim a mensagem de seu olhar. Seguiu o primeiro dos homens e deixou o outro seguindo-o por trás. Viu a mulher do dia anterior na casa e se surpreendeu com isso. "Eles me deixaram na casa de uma mulher?", perguntou a si mesmo. "Isso não faz o menor sentido. Mesmo que ela fosse viúva ou escrava, não teriam porque me deixar com alguém que pudesse matar tão facilmente", continuou pensando. Saiu da casa e caminhou com os homens instintivamente. Olhou para a vila durante a manhã, contando as pessoas ao seu redor, quantos trabalhavam, quantos lamentavam, quantos nada faziam. Quantos sorriam, e este número era extremamente reduzido. Ainda assim, tentava encontrar naquele estranho modo de vida, não tão diferente do de sua terra agora com o chão queimado, um motivo para deixar uma situação tão propícia a uma fuga. "Talvez estivessem me testando, verificando se eu teria coragem de fugir, assim poderiam decidir se me fariam de escravo ou se me matariam". Seguindo seu pensamento, aquela pequena excursão pela vila representaria então a decisão do povo que o capturou.
Os homens o levaram até o rio mais próximo e o deixaram se lavar. Não ficaram ali esperando que voltasse, apenas trouxeram outra muda de roupa que ficou na margem do rio, deixaram subentendido que esperavam que o homem retornasse para a vila. Poderia ser outro de seus testes, poderia haver homens espreitando na mata, observando seus movimentos e aguardando que tentasse fugir. Para matá-lo.

Ficou ali. Em meio a pensamentos, em pé, dentro do rio, olhando para a água corrente sem realmente vê-la. Seus olhos não viam nada, apenas o que sua mente dizia que viam. E sua mente resgatava memórias, pensava loucamente sem concluir nada. Seguia por todos os rumos ao mesmo tempo, parada no tempo. Não avançava, não recuava. Não tinha escolha.
Foi então que percebeu que estava sendo observado e olhou na direção que seus sentidos apontaram o vigia. Lá estava a mulher que vira no dia anterior e na casa. Aquela que não fazia o menor sentido deixar junto dele. "Quanto mais penso nisso, mais acredito que é uma escrava", disse a si mesmo. Ela o olhava tristemente, na verdade, parecia que iria chorar à qualquer momento. Seus olhos repletos de compaixão não demonstraram vergonha alguma ao vê-lo nu na água, e ele não estava disposto a se cobrir, muito menos ali. Ficaram assim um tempo se olhando, até que ele resolveu mergulhar. "Seria melhor desaparecer no meio dessa correnteza e seguir adiante sem precisar pensar em nada", pensou. "Mas ainda tenho coisas a fazer, ainda sinto que posso chegar em casa. Não sei onde essa esperança enganadora reside, mas não consigo abandoná-la! Queria se forte o bastante para me matar. Queria ser corajoso suficiente para erguer uma espada e batalhar por minha liberdade e morrer como meus companheiros. Ao invés disso, aqui estou, esperando a morte me agarrar! Quão patético me tornei...", e assim seguiam seus pensamentos. Lamentações intermináveis de seu destino, deixando que a água o levasse, sem ter a consciência disso. Tudo se tornou escuro e sua consciência esvaiu-se no meio do fluxo de escuridão.
Acordou agarrado pela mulher, agora na margem do rio e foi então que percebeu que estivera quase se afogando. O frio era intenso e seu corpo estava pesado. Ele não queria se mover, mas sentir-se tão pesado o fazia lutar para se mexer inconscientemente. Ouviu a voz da mulher outra vez. Estava tentando falar com ele, como antes, mas agora era uma mistura de incompreensão e angústia. Era um pedido que ele não sabia do que se tratava. Não respondeu como sempre, e ela continuou a falar. Tocou-lhe as costas e seus pensamentos foram imediatos. "Ah...! Quanto tempo faz que não me falam disso? Sequer lembrava de minhas queimaduras. Ela já deve ter percebido tudo, já deve saber que sou um estrangeiro, soldado, e que matei do seu povo. Deve pensar que essas marcas terríveis são da guerra e pensar em chamar os outros homens, constatar aquilo que sempre suspeitaram e finalmente acabarem com minha vida."
"Já era hora", pensou e, num pesado suspiro, parou de se mover. Aquilo emudeceu a mulher, que se levantou e começou a se afastar. Ele ergueu o rosto para vê-la ir embora, mas ela ainda estava lá, perto. Viu-se novamente confuso. O que ela queria afinal? Não olhava diretamente para ele, não parecia querer machucá-lo. Salvá-lo nunca foi uma opção válida, por isso ele descartava essa possibilidade antes de cogitar sua existência nas profundezas de sua alma. Tudo estava tão obscuro aos seus olhos, mesmo ela.
Não sabia, mas estava completamente errado, desde o começo. A luz estava ali para chamá-lo de volta à vida e ele ignorava isso. Submerso em seus próprios temores, surdo para as vozes tranquilas que muito desejou ouvir novamente. A vila não era tão ruim assim. A marca em suas costas nada tinha a ver com a guerra, era resultado da exposição ao sol. Muitos de sua maldita terra tinham marcas parecidas nas costas, terríveis marcas de queimado que mais pareciam fogo ou óleo quente. Aquilo era suficiente para fazer qualquer pessoa deduzir que ele fora vítima de torturas. Torturas de guerra, foi o que ela pensou. Por isso a compaixão, mas ele não havia entendido aquilo. A marca de seu povo havia lhe deixado também uma marca física, e suas lembranças do sonho retornavam de vez em quando. Era um estranho ciclo naquele dia que também não apresentou significado para ele.

Sentou-se no mato e esperou secar. Não haviam trazido uma toalha, afinal. De frente para o rio permaneceu, pensativo. E por vários momentos ouviu a voz da mulher. Não respondeu uma vez sequer até que ela foi embora. Suas dúvidas ainda o mantinham perturbado, e aquela marca do seu povo estava outra vez presente em sua mente. Firmes, seus olhos fixos no reflexo que o sol fazia no rio o convidavam para outro mergulho de pensamentos, sem saídas, sem conclusões.
Vestiu-se e voltou para a vila, onde os homens o aguardavam. A mulher conversava com outras pessoas normalmente e não parecia contar nada realmente importante. Talvez ainda não fosse a hora de terminarem com aquilo, talvez ainda precisassem de mais alguma prova. A única mudança que ele percebeu foi a do olhar geral da vila. Muitos que antes o viam com suspeita, deixaram de lado a desconfiança e pareciam aceitá-lo.
Ele só não saberia dizer por quanto tempo aquilo iria durar.

2 comentários:

Tiny Tanuki disse...

Ai que agonia que eu tenho dessa terra dele xD Não ia conseguir viver nem uma semana lá, com um Sol desses.. até entendo porque ele é tão atormentado com isso... e não sabia que ele queria voltar pra casa o.o achava que só queria morrer ou sumir.

Ah, eu estou adorando os posts e o tamanho deles *-*

Fonftka disse...

Achei que esse post foi bem diferente dos anteriores. Sinto que no começo ele mais parecia uma criatura qualquer que uma pessoa mesmo, mas agora vimos que ele pensa com complexidade e lógica ainda, acho que é a primeira vez em que isso acontece dessa forma. Talvez voltar ao contato com outras pessoas tenha despertado esse lado humano nele de novo... ou então ele simplesmente não tinha motivos para usá-lo antes de ser achado.

ENOOOORME! Cada vez maior. E ficando com um clima mais tenso também, pelo que percebo. Acho que a história passou a ganhar mais racionalidade conforme você foi escrevendo também... difente daquele jeito intuitivo como você começou. Não é ruim, ela tá progredindo e eu quero mesmo ver onde isso vai dar! Não sei dizer também se quero que ele morra ou não, sabe. XD Estou tentando apenas assistir à história mesmo, mais que me apegar a esse homem tão cheio de traumas.

Ainda acho tudo isso um trabalho brilhante. XD