quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sonho (1) - Escondido na mudez

O sol estava se pondo, o céu tomado pelo laranja espantava as poucas nuvens restantes nele. Todas pequenas e distantes umas das outras, se movendo em velocidades diferentes, mas isso era quase imperceptível. Entretanto, um pequeno grupo de nuvens tingidas pelo céu se aproximavam umas das outras. Ele percebeu todas bem próximas, e com o soprar do vento, pareciam ainda mais juntas. Todas cercando uma no centro, que, sem para onde vir, seguia com o grupo. Aquela cena teria um significado totalmente diferente para outras pessoas, mas ele acreditou que era um sinal do incompreensível sobre seu estado atual.

Era igual. O cerco de pessoas, guiando para um lugar que não gostaria de ir. Único prisioneiro, afinal. Não tinha certeza quanto outros sobreviventes, mas tentou acreditar na possibilidade. "As outras nuvens?", fez para si mesmo. As palavras vagarosamente voltavam à rotina de sua mente, num esforço da retomada dos diálogos. Mas era tudo uma vaga lembrança de outra vida.
"O laranja?", sua mente perguntou. É o fogo, respondeu seu coração. Ardendo para todo o lado que olhasse, tomando o ambiente com sua forte coloração e destruindo qualquer chance de fuga. "Esse é o solo", pensou. O solo em torno de onde se encontrava, em torno da pequena vila. Tudo era negro ali embaixo, consumido pelo calor, torrado, acabado. O cheiro de fumaça não era tão forte, mas mostrava a lembrança da terra sobre a sua própria dor. Seria tão diferente assim dele?
Não eram tão diferentes assim. Comiam quando podiam, mas bebiam mais livremente antes que o rio fosse tomado pelo sangue e pela pilha de mortos, deduziu. Essa parte era diferente, não existia pilha de mortos em rios na sua maldita terra porque não havia pessoas suficientes para isso. Não era algo a se invejar, no entanto. A cor era outra diferença, e surpreendentemente eles não pareciam ligar tanto para isso quanto em sua maldita terra. Era clara a diferença. Clara porque era essa a diferença, eles eram esbranquiçados. Ficar tanto no sol forte fez com que todos de seu lar possuíssem aquela marca quente na pele. Possuíssem o cheiro do sol neles. Mas isso parecia ser igual a eles. Também eram igualmente pobres e miseráveis, eram idênticos nas adversidades, pelo menos no momento. "Não, eu ainda estou para morrer", concluiu.

Alguém o chamou e ele mal se virou para trás. Estava sentado num ponto da vila que não era nem no centro nem na ponta, onde todos poderiam vê-lo e que ele não precisasse ficar perto de ninguém. Ainda assim, uma mulher veio, chamou-o e sentou-se ao seu lado. Entreolharam-se um instante, estavam próximos, bem próximos. Poderia se jogar sobre a mulher ali, naquele momento, sem que ninguém tivesse chance de salvá-la. Mas pra que o faria? Não tinha pra onde escapar, ou como, ou porque. "Porque, eu tenho", respondeu a si mesmo. E então esqueceu de tudo que pensava, ela falara outra coisa.
Fitava cada rosto quando tinha oportunidade, ainda que seus olhos tentassem fugir todo o tempo, sua atenção se voltava agora para cada detalhe das pessoas que o cercavam. E não eram poucas, haviam crescido em número rapidamente. Desde que chegara a vila, trazido pelos homens, muitas mulheres e crianças e idosos o observaram com desconfiança. Homens se preparavam para o final de suas dúvidas, as quais faziam seus olhares se dividirem entre a compaixão e a raiva. Escolheram por fim aparente, a primeira das opções. Não por influência própria dele, sabia, não tinha tal poder. Fora o jovem que o salvara, outra vez. Discursou para o povo da vila e suas dúvidas desapareceram, mas ele não sabia o que isso significava. Eram tão diferentes, afinal. Não sabia o que falavam, o que pensavam, o que sentiam. Deduziria muito bem o que sentiram, mas o presente não estava no seu domínio. O presente era domínio deles, dos homens e do povo da vila, e de todos daquela terra igualmente maldita que era tão igual e diferente da sua.
Por fim, percebera não entender nada que a mulher lhe disse. Soava como outra das muitas perguntas, e respondeu a isso com um rosto duvidoso. Então ela repetiu e ele teve mais certeza sobre seu pensamento. Parecia uma pergunta, por isso ele respondeu acenando a cabeça. Isso ele poderia fazer sempre, mas estaria tudo bem simplesmente não dizer nada a ninguém e concordar quando julgasse que assim deveria? "Está tudo bem, eles vão me matar", disse a si mesmo, conformado.
A mulher sorriu, pareciam estar finalmente se comunicando. Ou ele estaria a enganando. Qual dos dois seria menos nocivo para ele? Não sabia dizer. Portanto seu olhar pesou outra vez e ela percebeu isso, falando um pouco mais baixo, compassiva, quase o tocando. Ele fugiu. Esquivou-se para longe dela, arrastando o corpo pesadamente para os lados e, mesmo com toda a sua fadiga visível, conseguiu evitar o toque. Ela franziu o cenho, parecia irritada. Ou insistente. Seu profundo olhar parecia penetrar no seu coração, algo que ele não gostaria de mostrar. Tinha que desviar o olhar, evitar o contato, fugir novamente, mas era impossível, a mágica já estava feita e ele não desgrudava os olhos dela. Não era nada, só atenção para um louco que jurou a sua própria morte dias atrás e parecia fazer de tudo para realizá-la.
Com um suspiro pesado, ela desistiu. Ergueu-se e saiu sem dizer uma palavra. "Eu não posso te entender", pensou como uma justificativa, ainda agressiva em seu coração, embora quisesse pensar "fez bem em não dizer nada, eu não poderia entender mesmo se insistisse", a diferença entre um pensamento e outro era a articulação de uma fala, coisa que ainda estava se lembrando de como fazer.
Ele permaneceu ali, olhando a mulher se afastar. E a medida que ela andava, tudo escurecia, a noite estava chegando outra vez. Era o período do dia que ele aprendeu a odiar, assim como o dia. Outro homem veio conversar. Andou rápido até uma distância que pudesse ser entendido claramente e falou firme. Era uma ordem. Ele não sabia o que significava, mas se levantou e olhou discretamente para o homem. Então outra frase veio e ele pôde deduzir um "venha comigo".
Assim o fez, sendo levado até uma das casas. Pessoas estavam reunidas no lugar, os olhares centrados nele, obviamente. A conversa começou, incompreensível como sempre. Ele deduziu algumas coisas, mas abandonou toda e qualquer tentativa de compreensão logo. Estava cansado, de tudo. Estava cansado demais para forçar sua cabeça a entender algo que não poderia. Queria cair, deitar, dormir, levar sua consciência para um lugar distante o bastante para não ouvir aquelas vozes nunca mais.
Disse algo, finalmente, mas que também não passava de um eco além da compreensão. Um grunhido, inexplicável, um reflexo de suas incapacidades. Mais perguntas vieram e mais respostas estranhas, ele tentava imitar qualquer som emitido pelas pessoas ao seu redor sem perceber isso. Estava apenas reproduzindo sons, tentando convencê-los de que era mudo, de que não tinha chance de se entenderem, para acabar logo com tudo. "Eu não tenho nada a dizer, eu não sei de nada. Apenas levem-me para longe, faça com que tudo isso acabe", pensou.
Emudeceram também, por fim. Quase todas as pessoas resmungaram alguma coisa e saíram da sala, só restaram ele, o jovem, a mulher com quem tentou conversar e outro dos homens que o carregou até a vila. Mais uma vez as vozes tomaram o ambiente numa conversa séria. Eles se esforçavam para entendê-lo, e ele se esforçava para que isso não ocorresse. Ele sabia porque, ele entendia do fundo de sua alma que a descoberta de quem ele era mudaria tudo, mudaria pra pior. Ele tinha que fugir de lá, mas como? Olhou para a fogueira acesa e imergiu em pensamentos outra vez, as memórias vivas de sua última batalha, da dor, do sangue, do ódio e da solidão voltaram. Muito daquilo permanecia com ele. Perdera a batalha, mas não conseguiu ter o mesmo fim de todas as pessoas a sua volta, de sua terra, da sua pátria morta. Todos estavam mortos, só restara ele, sozinho, numa terra estrangeira que tentou invadir. O lugar onde todas as suas vítimas estavam, onde o solo morreu por gente da sua maldita terra em busca de um lar um pouco melhor. Entretanto, nada de bom veio da guerra. E agora ele lutava outra vez por sua vida, para permanecer escondido na mudez.

Todas as pessoas juntas, mas não simultâneamente, apontaram para o chão e disseram a mesma frase. Isso cravou em sua mente perturbada o sentido de tudo aquilo que faziam desde que o trouxeram para o interior da casa. Eles disseram: "você vai ficar aqui!".

3 comentários:

Fonftka disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Fonftka disse...

Esse final ficou muito bom! Quero realmente entender de onde ele veio e para onde ele vai, mas acho que o centro dessa história nem acaba sendo a gente juntar as peças friamente para saber dos detalhes, do combate em si... Acho que é mais uma questão de aceitar os fatos. Ele sobreviveu a uma experiência terrível, mas morreu de alguma outra forma. Essa sensação de quase não ser mais "pessoa"... e ainda mais estando num lugar onde as pessoas não conseguem saber o que ele sente, isso tudo é que mexe mais comigo. XD

É realmente um jeito bem diferente de contar uma história, Arty. Dessa vez eu consegui ver a câmera de outros ângulos em alguns momentos, tipo quando o jovem foi falar com o resto das pessoas. Mas depois voltei a ver através dos olhos dele, isso até o final. Acho brilhante e traz uma sensação que parece precisar de palavras pra descrever... e aí a gente percebe como precisamos dessas palavras para passar o que sentimos uns para os outros. Como dependemos disso tudo, até para pensar, né.

E eu escrevi um outro texto no comentário UAHUAHAUH A história já ficou bem grande, não preciso aumentar por aqui. Então, muito bom mesmo! Continue, continue, continue! =D

Tiny Tanuki disse...

To adorando essa coisa de todo dia ter um post *-* *feliz*

E a história tá muito boa, eu já tenho um monte de teorias sobre esse cara xD Vou ficar esperando a continuação pra saber se alguma delas é válida =P