segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Sonho (1) - Andando em silêncio

Com o sol bem acima de sua cabeça, ele tentava contar inutilmente o tempo que estava andando. Em silêncio, claro. Não havia nada para falar, ou sobre o que falar, ou com quem falar. Até mesmo sua mente estava parando de pensar em diálogos. A única coisa que sua mente pensava era em como chegar a salvo, como manter aquele resquício frágil de vida longe da extinção pelo máximo possível de tempo. Portanto, ele caminhava.

Refletindo no fundo de sua alma e outra vez emergindo em seus pensamentos mortos, lembrou-se de como era o lugar para onde se dirigia (ou pensava que se dirigia). A péssima memória o fez franzir a sobrancelha. Se ainda se lembrasse de como conversar teria dito "terra maldita!", mas ainda não lembrava que tinha tal domínio.
Uma vez ou outra produzia um som qualquer com a boca, inconsciente do fato, contudo. Não tinha o propósito de comunicar nada, nem a si mesmo. Sequer uma palavra de ânimo, talvez um "siga em frente, não deve faltar muito mais!" ou "Depois desse trecho, vire à direita e siga por mais um dia".
Dias. Era isso que tentava contar. Sem sucesso, abandonou a frágil idéia e caiu. Estava exausto, sabia disso, sabia que não poderia continuar andando com tão pouca força. Só restava esperar. Talvez por mais alguns dias até que algum viajante entusiasmado com as novidades encontrasse um cadáver numa trilha secreta que servia de atalho entre duas aldeias. "Se eu tivesse ido pela estrada principal, talvez pudesse ser encontrado por alguém", sua mente lhe disse. Ele não respondeu. Nem queria. Queria apenas dormir e sonhar com sua maldita terra diante dos seus olhos.

Ainda poderia ver com nitidez a ridigez de sua terra, o cheiro de adversidade exalando do chão, o sussurro da pobreza nos seus ouvidos. Um arder como fogo incrustado em sua pele pelo sol. Memórias deixadas no corpo, memórias que jamais sumirão. Era assim que seus olhos lembravam de sua terra, maldita terra. Ali estivera com sua família, com crianças, buscando apenas dias um pouco melhores. Aprendera que milagres não aconteciam ali, e que a salvação vinha do modo mais simples possível. A guerra.
Sempre fora assim antes de nascer e deduzia que continuaria assim. Guerra atrás de guerra. Chamas, mortes, terror. Ali estava outra das cicatrizes de sua vida, e o temor surgiu do fundo de sua alma em recordações tenebrosas de um passado próximo. Gritos desesperados, esforço sobre-humano, milagres que nada mais eram que sobreviver. Para cada dia, um desses pequenos e indiferentes milagres. Então veio a luz e com ela, seu despertar.

À princípio imaginou que as vozes eram os ecos dos mortos lhe chamando, mas essa impressão não durou muito tempo. Foi só abrir os olhos e pronto, ali estava o brilho do sol. Outra coisa que ele aprendeu a odiar com o tempo. Houve o tempo em que gostava da lua, mas agora nem isso. Havia se perdido nas noites mais escuras em sua silenciosa viagem e, desde então, passara a odiar tanto o dia quanto a noite.
Em seguida, encontrou os donos das vozes. Os homens estavam por toda parte à sua volta, falando sem parar, gesticulando, animados. Talvez irritados, ferozes, famintos. Ele não sabia dizer. Ele não sabia nada, principalmente o que falavam. A língua era estranha, o sotaque, mais ainda. A pronúncia das palavras ricocheteava em seus ouvidos e não atingia seu cérebro. O mesmo que parou de contar o tempo agora contava os homens.
Eram seis. Grande parte maduros, porém o que estava mais próximo e entusiasmado era jovem e isso era outra coisa que desconhecia. Os jovens eram animados e felizes, mas não em sua maldita terra.
Pouco tempo depois notou que as palavras eram em grande parte dirigidas a ele, pareciam perguntas ou assim soavam aos seus ouvidos. Era o óbvio, perguntar quem era. Saberia responder? Poderiam reconhecê-lo? O medo invadiu-o novamente. Não tinha resposta para aquilo. A sorte não o acompanha desde sua última batalha. Deveria estar morto faz tempo, porém algo parecia brincar com o seu destino, embaralhando suas expectativas uma vez após a outra, sempre desmentindo suas impressões imprecisas do futuro próximo.
Mudo. Foi como permaneceu. Um pio sequer, os olhos levemente arregalados, tão pouco que ninguém percebeu. Não tinha forças nem para esboçar uma careta, um olhar de espanto, um coração acelerado.
Estaria morto se o fizesse, e inferiu que assim seria, entretanto, os homens o ergueram, colocaram-no num cavalo e deram seguimento a uma outra viagem, para outra terra. Uma terra recém maldita que nada lhe teria a dizer.

Um comentário:

Fonftka disse...

Que coisa... diferente de tudo que você vinha colocando aqui. E, ainda assim, ficou muito bem escrito e muito bom de ler! Dá pra acompanhar com muita clareza as sensações desse homem, porque as suas descrições de como as coisas acontecem dentro e fora dele ficaram ótimas. Adoro quando você escreve, não deveria poder para nunca, porque parece que você faz algum tipo de mágica com as palavras e elas ganham uma beleza tão diferente... *-*

Acho genial, mesmo num conto pequeno como esses. E espero que ele continue, quero saber onde isso vai dar!

E que você continue escrevendo! Por você? Nem só, mas por nós também! HAH! Porque é bom e vicia, Arty. Adoro ler o que você faz. XD


Ótimo texto! =D