sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sonho (1) - Marca

Passado havia muitas coisas diante de seus olhos em todos os seus sonhos daquela noite. Muito de sua história estivera representada ali, pois dela ele não conseguia fugir. Entre tantas coisas que o assolaram no sono, a última - e também que ficaria mais tempo em sua lembrança após acordar - era uma imagem inicialmente borrada, difícil de reconhecer, mas que logo tomou uma forma conhecida. O desenho do sol era a marca de seu povo, talvez por serem tão castigados por ele que não sabiam mais separá-lo de suas vidas. O sol também serviria como mensagem para os outros povos, mostrando o que aconteceria num confronto direto entre eles. E assim foi, pois as chamas de seu exército consumiram as terras estrangeiras onde aquele simples homem, ex-soldado, estava agora.
A luz matinal cobriu o desenho de seu povo e apagou-o completamente, fazendo assim o viajante acordar. O silêncio parecia imperar, e nem as aves cantavam naquela manhã. Seria estranho, incômodo, perceber isso àquela altura de sua viagem, mas nos locais onde a guerra havia passado só o vento e os corvos serviam de companhia. Portanto estava acostumado ao silêncio tão bem quanto estava acostumado aos sons dos animais à sua volta. Nenhum deles lhe trazia paz, entretanto. A presença e as vozes das pessoas também não. Aliás, dentre todos os barulhos, aqueles feitos por humanos são os que mais incomodavam-no. Ele não sabia o que esperar deles, e não sabia o que esperar de si mesmo. Não havia nada a ser feito ali, concluiu para si mesmo.

Permaneceu na cama por um bom tempo, primeiro deitado, olhando o teto de madeira e sentindo o cheiro de queimado à sua volta. Não sabia se vinha da janela ou da fresta da porta, mas tanto a fogueira acesa por toda a noite quanto a terra assolada de toda a vila poderiam ter aquele cheiro. "Não importa", pensou, passando a sentar-se na cama e meditar. Sobre a vida, sobre a morte, sobre suas dores. Era uma rotina já, pensar nessas coisas. Não tentava achar uma saída, nem concluir nada. Não esperava encontrar resposta alguma, eram apenas pensamentos desordenados que vagavam permanentemente em sua alma. Ele não saberia evitá-los mesmo se quisesse.
Foi então que entraram em seu quarto quando ele ainda estava meditando. Mesmo a quebra do silêncio não o despertou. Aos poucos notou a presença dos estranhos e não se assustou com eles, apenas ergueu os olhos para ver os dois homens no quarto que não era seu. A seriedade pairava no ar, e mais palavras foram proferidas sem que ele entendesse alguma delas. Mas isso não importava, ele conseguia deduzir do que se tratava. Colocou-se de pé e estava pronto para seguir os homens onde quer que fossem, até se o levassem para sua morte. Um deles se virou e saiu da sala. O viajante continuou a olhar para o que ficou, entendendo assim a mensagem de seu olhar. Seguiu o primeiro dos homens e deixou o outro seguindo-o por trás. Viu a mulher do dia anterior na casa e se surpreendeu com isso. "Eles me deixaram na casa de uma mulher?", perguntou a si mesmo. "Isso não faz o menor sentido. Mesmo que ela fosse viúva ou escrava, não teriam porque me deixar com alguém que pudesse matar tão facilmente", continuou pensando. Saiu da casa e caminhou com os homens instintivamente. Olhou para a vila durante a manhã, contando as pessoas ao seu redor, quantos trabalhavam, quantos lamentavam, quantos nada faziam. Quantos sorriam, e este número era extremamente reduzido. Ainda assim, tentava encontrar naquele estranho modo de vida, não tão diferente do de sua terra agora com o chão queimado, um motivo para deixar uma situação tão propícia a uma fuga. "Talvez estivessem me testando, verificando se eu teria coragem de fugir, assim poderiam decidir se me fariam de escravo ou se me matariam". Seguindo seu pensamento, aquela pequena excursão pela vila representaria então a decisão do povo que o capturou.
Os homens o levaram até o rio mais próximo e o deixaram se lavar. Não ficaram ali esperando que voltasse, apenas trouxeram outra muda de roupa que ficou na margem do rio, deixaram subentendido que esperavam que o homem retornasse para a vila. Poderia ser outro de seus testes, poderia haver homens espreitando na mata, observando seus movimentos e aguardando que tentasse fugir. Para matá-lo.

Ficou ali. Em meio a pensamentos, em pé, dentro do rio, olhando para a água corrente sem realmente vê-la. Seus olhos não viam nada, apenas o que sua mente dizia que viam. E sua mente resgatava memórias, pensava loucamente sem concluir nada. Seguia por todos os rumos ao mesmo tempo, parada no tempo. Não avançava, não recuava. Não tinha escolha.
Foi então que percebeu que estava sendo observado e olhou na direção que seus sentidos apontaram o vigia. Lá estava a mulher que vira no dia anterior e na casa. Aquela que não fazia o menor sentido deixar junto dele. "Quanto mais penso nisso, mais acredito que é uma escrava", disse a si mesmo. Ela o olhava tristemente, na verdade, parecia que iria chorar à qualquer momento. Seus olhos repletos de compaixão não demonstraram vergonha alguma ao vê-lo nu na água, e ele não estava disposto a se cobrir, muito menos ali. Ficaram assim um tempo se olhando, até que ele resolveu mergulhar. "Seria melhor desaparecer no meio dessa correnteza e seguir adiante sem precisar pensar em nada", pensou. "Mas ainda tenho coisas a fazer, ainda sinto que posso chegar em casa. Não sei onde essa esperança enganadora reside, mas não consigo abandoná-la! Queria se forte o bastante para me matar. Queria ser corajoso suficiente para erguer uma espada e batalhar por minha liberdade e morrer como meus companheiros. Ao invés disso, aqui estou, esperando a morte me agarrar! Quão patético me tornei...", e assim seguiam seus pensamentos. Lamentações intermináveis de seu destino, deixando que a água o levasse, sem ter a consciência disso. Tudo se tornou escuro e sua consciência esvaiu-se no meio do fluxo de escuridão.
Acordou agarrado pela mulher, agora na margem do rio e foi então que percebeu que estivera quase se afogando. O frio era intenso e seu corpo estava pesado. Ele não queria se mover, mas sentir-se tão pesado o fazia lutar para se mexer inconscientemente. Ouviu a voz da mulher outra vez. Estava tentando falar com ele, como antes, mas agora era uma mistura de incompreensão e angústia. Era um pedido que ele não sabia do que se tratava. Não respondeu como sempre, e ela continuou a falar. Tocou-lhe as costas e seus pensamentos foram imediatos. "Ah...! Quanto tempo faz que não me falam disso? Sequer lembrava de minhas queimaduras. Ela já deve ter percebido tudo, já deve saber que sou um estrangeiro, soldado, e que matei do seu povo. Deve pensar que essas marcas terríveis são da guerra e pensar em chamar os outros homens, constatar aquilo que sempre suspeitaram e finalmente acabarem com minha vida."
"Já era hora", pensou e, num pesado suspiro, parou de se mover. Aquilo emudeceu a mulher, que se levantou e começou a se afastar. Ele ergueu o rosto para vê-la ir embora, mas ela ainda estava lá, perto. Viu-se novamente confuso. O que ela queria afinal? Não olhava diretamente para ele, não parecia querer machucá-lo. Salvá-lo nunca foi uma opção válida, por isso ele descartava essa possibilidade antes de cogitar sua existência nas profundezas de sua alma. Tudo estava tão obscuro aos seus olhos, mesmo ela.
Não sabia, mas estava completamente errado, desde o começo. A luz estava ali para chamá-lo de volta à vida e ele ignorava isso. Submerso em seus próprios temores, surdo para as vozes tranquilas que muito desejou ouvir novamente. A vila não era tão ruim assim. A marca em suas costas nada tinha a ver com a guerra, era resultado da exposição ao sol. Muitos de sua maldita terra tinham marcas parecidas nas costas, terríveis marcas de queimado que mais pareciam fogo ou óleo quente. Aquilo era suficiente para fazer qualquer pessoa deduzir que ele fora vítima de torturas. Torturas de guerra, foi o que ela pensou. Por isso a compaixão, mas ele não havia entendido aquilo. A marca de seu povo havia lhe deixado também uma marca física, e suas lembranças do sonho retornavam de vez em quando. Era um estranho ciclo naquele dia que também não apresentou significado para ele.

Sentou-se no mato e esperou secar. Não haviam trazido uma toalha, afinal. De frente para o rio permaneceu, pensativo. E por vários momentos ouviu a voz da mulher. Não respondeu uma vez sequer até que ela foi embora. Suas dúvidas ainda o mantinham perturbado, e aquela marca do seu povo estava outra vez presente em sua mente. Firmes, seus olhos fixos no reflexo que o sol fazia no rio o convidavam para outro mergulho de pensamentos, sem saídas, sem conclusões.
Vestiu-se e voltou para a vila, onde os homens o aguardavam. A mulher conversava com outras pessoas normalmente e não parecia contar nada realmente importante. Talvez ainda não fosse a hora de terminarem com aquilo, talvez ainda precisassem de mais alguma prova. A única mudança que ele percebeu foi a do olhar geral da vila. Muitos que antes o viam com suspeita, deixaram de lado a desconfiança e pareciam aceitá-lo.
Ele só não saberia dizer por quanto tempo aquilo iria durar.

sábado, 13 de novembro de 2010

Sonho (1) - Aquilo que ficou pra trás

Era estranho. Tudo. O ar, a água, a comida. As pessoas que vagueavam por toda a parte na vila, ora expressando inconscientemente toda a sua determinação em viver, sua satisfação pela sobrevivência à guerra, ora revelando um rosto lamentador, tristonho, revirando o chão com um olhar pesado. Também era estranho as sombras que se mexiam sem parar no quarto, sombras que ele não estava mais acostumado a ver. Aquilo era por causa da fogueira, da lamparina, do vento que soprava baixinho passando pela fresta da janela e penetrando no quarto, fazendo muito do que ali estava se mover. "Ah! O luar! Você também é responsável por isso!", pensou ele.
Era estranho estar naquela terra estrangeira e, ele sendo agora um simples viajante, ter tanto medo do que ocorria onde seus olhos não alcançavam. A cicatriz da batalha era muito profunda, e toda vez que uma paz surgia entre os inúmeros embates sem fim, descobria mais tarde que não passava de uma mentira.
A paz não existia.

Era por isso que seus olhos ainda estavam tão abertos, muito mais do que estavam mais cedo, ou nos outros dias de viagem, aqueles junto aos homens. De alguma forma misteriosa seu corpo agora parecia não estar satisfeito com a idéia da morte. Talvez fosse o medo de não saber como e quando ocorreria, não se ocorreria. Talvez alguém estivesse esperando calmamente ele adormecer para tirá-lo a vida. Isso poderia ser agradável, se não percebesse que o sonho o levaria direto para a morte. O problema estava em simplesmente não entender nada em meio à dores, e puxões, e machucados. E sangue. "Sim, o sangue", sua mente repetiu. A palavra quase pulou pela boca. Essa ele lembrava, tinha certeza de como dizer. Seriam capazes de entendê-la caso dissesse? Não tinha certeza. Mas ela existia e o perseguia desde muito. Desde o começo da guerra.
"Quanto tempo faz?", se perguntou novamente. Queria saber quando a guerra começou, mas não conseguia se lembrar. "Quando comecei a lutar nela?", essa era mais precisa, não mais que um ano, talvez. Não fazia muito tempo que abandonou sua terra maldita para buscar uma melhor condição de vida, ainda podia se lembrar dos rostos das crianças de sua terra. Mas pensar naquilo o fazia rever também o rosto de suas vítimas. E lembrar-se das vítimas o fazia pensar que também seria uma. Logo, logo.
Conseguia ouvir o incessante crepitar da fogueira no cômodo ao lado. Era angustiante. Os berros, a correria, a dificuldade. Tudo isso ainda morava na sua cabeça. A guerra inteira era um trauma, principalmente sua última batalha. Seu coração batia mais rápido agora, o medo crescendo cada vez mais, uma mistura das lembranças do sofrimento das pessoas e uma associação de tudo aquilo que viu acontecer com outras pessoas também acontecer com ele. A noite parecia interminável. Todo barulho exterior parecia o de alguém se aproximando. "O assassino!", pensava. Ouviu uma voz em outro cômodo da casa. "Estão se aproximando!". Ele não tinha forças para se levantar, por isso olhava a porta o tempo inteiro agora, esquecendo a janela que permanecia pouco acima da sua cabeça, um excelente lugar para alguém iniciar um ataque.
Depois de um tempo, ouviu passos e, por fim, viu a maçaneta se mexer. Tinha certeza de que era o seu fim, de que aconteceria naquele momento, justamente quando pensavam que estaria dormindo, porém a porta não abriu e ninguém entrou. Em momento algum, os moradores daquela pequena vila invadiram seu quarto. E todo o esforço que ele fazia para se manter alerta exauriu sua mente mais do que pôde notar, portanto, caiu no sono sem perceber, também.

Seu sonho começou exatamente daquela maneira, no quarto, deitado, esperando seu julgamento chegar. Então, junto com os pensamentos de sua terra, a casa se abriu e o sol apareceu. Era um bonito amanhecer com as crianças correndo para todos os lados. Então veio o chamado para a guerra, e ele foi, junto de muitos, de milhares. Era a hora de lutar. Disseram-lhe muitas coisas: instruções, como manusear suas armas, o que fazer numa batalha, como responder seus superiores. Disseram-lhe o que fazer em cada uma de suas lutas, como fazer para que o todo sobrevivesse. Era a hora de lutar, sempre era. Mesmo quando deitava, ou tentava dormir, ou dormia tentando manter-se acordado, a guerra vinha, a batalha o perseguia. O inimigo era feroz, por isso, ele lutava.
Cada uma de suas primeiras vítimas passou diante de seus olhos. Homens e mais homens. A maioria teve sua imagem gravada em meio a brados, mas não os de vitória. Ele também se lembrou de que não era forte, nem fraco. Não era herói, nem corajoso, por isso sempre esteve junto dos soldados e nunca foi posto em cargos mais importantes. Também nunca fez parte das manobras estratégicas de seu exército. Ou salvou um oficial.
Não sabia, mas isso foi o que o fez sobreviver. No entanto, pensava não só nos guerreiros que matou, mas também nos inocentes. Nas crianças que nenhuma arma em suas mãos não atravessou, mas que seu coração, ainda que relutante, deixou serem mortas ou queimadas nos ataques de seu exército. Ele não tinha coragem alguma, nem para parar a guerra, nem para mergulhar nela e crescer por isso. Tudo que fez foi aceitar o que viu, o que fez, o que sofreu. E agora tentava aceitar seu destino como único sobrevivente e prisioneiro do povo que fez tanto sofrer.

O sonho o levou para sua última batalha. Toda a tropa onde parecia confiante. Não era pra menos, aquela era a última batalha. Estavam marchando para a capital estrangeira, em busca do último refúgio do governante daquela maldita terra. A guerra estava para acabar, finalmente. Ele batia forte contra o peito, lutando contra seus sentimentos que o esmagavam. Estava com muito, muito medo. De morrer, e seu exército vencer. De morrer, e seu exército perder. Desejava de todo coração não morrer e vencer, mas nenhuma das alternativas aconteceu. Tudo foi oposto do que previram, não só ele, mas todos do exército. Seu povo sucumbiu em armadilhas atrás de armadilhas, em falhas aparentemente impossíveis, em vantagens inimigas nunca antes vistas.
Talvez tudo aquilo fosse apenas um ataque em força total de um povo desesperado, mas não importava. Tudo havia acabado. Seus companheiros, a maioria esmagadora mais forte do que ele, morreram. Todos. E ele viu isso acontecer aos poucos. Cercados aqui, atropelados ali, queimados, esquartejados, destruídos. Era apenas o pior para cada um deles, exceto para ele.
Foi naquele momento que passou de soldado para viajante, ignorando as ordens e fugindo, junto de todo o restante do exército. Não soube explicar, não tinha idéia de quantos poderiam ter conseguido a mesma proeza que ele, mas conseguiu sobreviver. Era um milagre fugir de uma batalha perdida como aquela. Viu incontáveis de seus conterrâneos morrerem na mesma tentativa. Tudo era frustrante.
Por fim, viu-se sozinho, em silêncio quebrado por lágrimas e temores, numa terra totalmente estrangeira. O caminho para casa? Ah, esse ele fez durante toda a campanha de guerra, era só correr ao contrário agora. Mas quantos de seus inimigos estariam pelo caminho? Não sabia, não sabia mais nada. A confusão lhe tomava com cada vez mais intensidade, a ansiedade aumentava e não tinha mais ninguém que pudesse ajudá-lo. Estava inteiramente só numa maldita terra que nada de bom lhe trouxe. Memórias ruins, pesadelos, fome, dores. "Eu quero voltar pra casa!", pensou inúmeras vezes, gritando para o seu próprio coração despedaçado. Caminhou por muito tempo até ver outros rostos, e agora que finalmente conseguiu, esperava sua morte apenas.

Passou toda a noite se revirando, pensando em seu tenebroso passado recente. Aquilo que ficou pra trás era o foco dos seus sonhos, e ele não conseguia enxergar nada para o seu futuro, aquilo que o aguardava. À sua frente, pensava, restava apenas um único destino: a morte. Porém, desde que declarou sua sentença de morte, tudo que aconteceu foi um prolongamento de sua vida sem sentido. Outros homens tiveram tanta mais garra, mais vontade, coragem e ferocidade. Por que ele, um covarde, teria escapado? Por que o destino permanecia prolongando sua vida? Isso sequer passava em sua cabeça.

Era chegada a alvorada, as sombras da noite já haviam ido embora e seu sono não se tornava mais tranquilo. Ainda assim, ele dormia, esperando uma perseguição incansável dos fantasmas do seu passado. Para os seus olhos, a realidade não passava de miragens.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Sonho (1) - Escondido na mudez

O sol estava se pondo, o céu tomado pelo laranja espantava as poucas nuvens restantes nele. Todas pequenas e distantes umas das outras, se movendo em velocidades diferentes, mas isso era quase imperceptível. Entretanto, um pequeno grupo de nuvens tingidas pelo céu se aproximavam umas das outras. Ele percebeu todas bem próximas, e com o soprar do vento, pareciam ainda mais juntas. Todas cercando uma no centro, que, sem para onde vir, seguia com o grupo. Aquela cena teria um significado totalmente diferente para outras pessoas, mas ele acreditou que era um sinal do incompreensível sobre seu estado atual.

Era igual. O cerco de pessoas, guiando para um lugar que não gostaria de ir. Único prisioneiro, afinal. Não tinha certeza quanto outros sobreviventes, mas tentou acreditar na possibilidade. "As outras nuvens?", fez para si mesmo. As palavras vagarosamente voltavam à rotina de sua mente, num esforço da retomada dos diálogos. Mas era tudo uma vaga lembrança de outra vida.
"O laranja?", sua mente perguntou. É o fogo, respondeu seu coração. Ardendo para todo o lado que olhasse, tomando o ambiente com sua forte coloração e destruindo qualquer chance de fuga. "Esse é o solo", pensou. O solo em torno de onde se encontrava, em torno da pequena vila. Tudo era negro ali embaixo, consumido pelo calor, torrado, acabado. O cheiro de fumaça não era tão forte, mas mostrava a lembrança da terra sobre a sua própria dor. Seria tão diferente assim dele?
Não eram tão diferentes assim. Comiam quando podiam, mas bebiam mais livremente antes que o rio fosse tomado pelo sangue e pela pilha de mortos, deduziu. Essa parte era diferente, não existia pilha de mortos em rios na sua maldita terra porque não havia pessoas suficientes para isso. Não era algo a se invejar, no entanto. A cor era outra diferença, e surpreendentemente eles não pareciam ligar tanto para isso quanto em sua maldita terra. Era clara a diferença. Clara porque era essa a diferença, eles eram esbranquiçados. Ficar tanto no sol forte fez com que todos de seu lar possuíssem aquela marca quente na pele. Possuíssem o cheiro do sol neles. Mas isso parecia ser igual a eles. Também eram igualmente pobres e miseráveis, eram idênticos nas adversidades, pelo menos no momento. "Não, eu ainda estou para morrer", concluiu.

Alguém o chamou e ele mal se virou para trás. Estava sentado num ponto da vila que não era nem no centro nem na ponta, onde todos poderiam vê-lo e que ele não precisasse ficar perto de ninguém. Ainda assim, uma mulher veio, chamou-o e sentou-se ao seu lado. Entreolharam-se um instante, estavam próximos, bem próximos. Poderia se jogar sobre a mulher ali, naquele momento, sem que ninguém tivesse chance de salvá-la. Mas pra que o faria? Não tinha pra onde escapar, ou como, ou porque. "Porque, eu tenho", respondeu a si mesmo. E então esqueceu de tudo que pensava, ela falara outra coisa.
Fitava cada rosto quando tinha oportunidade, ainda que seus olhos tentassem fugir todo o tempo, sua atenção se voltava agora para cada detalhe das pessoas que o cercavam. E não eram poucas, haviam crescido em número rapidamente. Desde que chegara a vila, trazido pelos homens, muitas mulheres e crianças e idosos o observaram com desconfiança. Homens se preparavam para o final de suas dúvidas, as quais faziam seus olhares se dividirem entre a compaixão e a raiva. Escolheram por fim aparente, a primeira das opções. Não por influência própria dele, sabia, não tinha tal poder. Fora o jovem que o salvara, outra vez. Discursou para o povo da vila e suas dúvidas desapareceram, mas ele não sabia o que isso significava. Eram tão diferentes, afinal. Não sabia o que falavam, o que pensavam, o que sentiam. Deduziria muito bem o que sentiram, mas o presente não estava no seu domínio. O presente era domínio deles, dos homens e do povo da vila, e de todos daquela terra igualmente maldita que era tão igual e diferente da sua.
Por fim, percebera não entender nada que a mulher lhe disse. Soava como outra das muitas perguntas, e respondeu a isso com um rosto duvidoso. Então ela repetiu e ele teve mais certeza sobre seu pensamento. Parecia uma pergunta, por isso ele respondeu acenando a cabeça. Isso ele poderia fazer sempre, mas estaria tudo bem simplesmente não dizer nada a ninguém e concordar quando julgasse que assim deveria? "Está tudo bem, eles vão me matar", disse a si mesmo, conformado.
A mulher sorriu, pareciam estar finalmente se comunicando. Ou ele estaria a enganando. Qual dos dois seria menos nocivo para ele? Não sabia dizer. Portanto seu olhar pesou outra vez e ela percebeu isso, falando um pouco mais baixo, compassiva, quase o tocando. Ele fugiu. Esquivou-se para longe dela, arrastando o corpo pesadamente para os lados e, mesmo com toda a sua fadiga visível, conseguiu evitar o toque. Ela franziu o cenho, parecia irritada. Ou insistente. Seu profundo olhar parecia penetrar no seu coração, algo que ele não gostaria de mostrar. Tinha que desviar o olhar, evitar o contato, fugir novamente, mas era impossível, a mágica já estava feita e ele não desgrudava os olhos dela. Não era nada, só atenção para um louco que jurou a sua própria morte dias atrás e parecia fazer de tudo para realizá-la.
Com um suspiro pesado, ela desistiu. Ergueu-se e saiu sem dizer uma palavra. "Eu não posso te entender", pensou como uma justificativa, ainda agressiva em seu coração, embora quisesse pensar "fez bem em não dizer nada, eu não poderia entender mesmo se insistisse", a diferença entre um pensamento e outro era a articulação de uma fala, coisa que ainda estava se lembrando de como fazer.
Ele permaneceu ali, olhando a mulher se afastar. E a medida que ela andava, tudo escurecia, a noite estava chegando outra vez. Era o período do dia que ele aprendeu a odiar, assim como o dia. Outro homem veio conversar. Andou rápido até uma distância que pudesse ser entendido claramente e falou firme. Era uma ordem. Ele não sabia o que significava, mas se levantou e olhou discretamente para o homem. Então outra frase veio e ele pôde deduzir um "venha comigo".
Assim o fez, sendo levado até uma das casas. Pessoas estavam reunidas no lugar, os olhares centrados nele, obviamente. A conversa começou, incompreensível como sempre. Ele deduziu algumas coisas, mas abandonou toda e qualquer tentativa de compreensão logo. Estava cansado, de tudo. Estava cansado demais para forçar sua cabeça a entender algo que não poderia. Queria cair, deitar, dormir, levar sua consciência para um lugar distante o bastante para não ouvir aquelas vozes nunca mais.
Disse algo, finalmente, mas que também não passava de um eco além da compreensão. Um grunhido, inexplicável, um reflexo de suas incapacidades. Mais perguntas vieram e mais respostas estranhas, ele tentava imitar qualquer som emitido pelas pessoas ao seu redor sem perceber isso. Estava apenas reproduzindo sons, tentando convencê-los de que era mudo, de que não tinha chance de se entenderem, para acabar logo com tudo. "Eu não tenho nada a dizer, eu não sei de nada. Apenas levem-me para longe, faça com que tudo isso acabe", pensou.
Emudeceram também, por fim. Quase todas as pessoas resmungaram alguma coisa e saíram da sala, só restaram ele, o jovem, a mulher com quem tentou conversar e outro dos homens que o carregou até a vila. Mais uma vez as vozes tomaram o ambiente numa conversa séria. Eles se esforçavam para entendê-lo, e ele se esforçava para que isso não ocorresse. Ele sabia porque, ele entendia do fundo de sua alma que a descoberta de quem ele era mudaria tudo, mudaria pra pior. Ele tinha que fugir de lá, mas como? Olhou para a fogueira acesa e imergiu em pensamentos outra vez, as memórias vivas de sua última batalha, da dor, do sangue, do ódio e da solidão voltaram. Muito daquilo permanecia com ele. Perdera a batalha, mas não conseguiu ter o mesmo fim de todas as pessoas a sua volta, de sua terra, da sua pátria morta. Todos estavam mortos, só restara ele, sozinho, numa terra estrangeira que tentou invadir. O lugar onde todas as suas vítimas estavam, onde o solo morreu por gente da sua maldita terra em busca de um lar um pouco melhor. Entretanto, nada de bom veio da guerra. E agora ele lutava outra vez por sua vida, para permanecer escondido na mudez.

Todas as pessoas juntas, mas não simultâneamente, apontaram para o chão e disseram a mesma frase. Isso cravou em sua mente perturbada o sentido de tudo aquilo que faziam desde que o trouxeram para o interior da casa. Eles disseram: "você vai ficar aqui!".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Sonho (1) - Vozes, ecos além da compreensão

O gramado se espalhava por toda a parte, acariciado pelo vento sem fim. Uma brisa e, logo após, uma corrente demorada de ar rápido que lhe abafava os ouvidos. No balançar do passo do cavalo, seus olhos subiam e desciam no horizonte, sem decifrar as minúcias da paisagem. Estava outra vez no absorto de uma mente sem ânimo. Haviam árvores que ajudavam a espalhar não só o verde, como também outras cores pelas suaves inclinações dos morros enquanto o azul claro salpicado de branco tingia o céu num belo dia.
A tranquilidade penetrava em sua alma por alguns instantes até que o som do vento sumiu. Era hora da brisa voltar. Foi só então que os ecos tocaram suas orelhas e sua mente, quase adormecida, se alertou para o ocorrido a sua volta. Deslizando os olhos sobre o panorama, encontrou os mesmos seis homens numa conversa frenética. O mais jovem era o mais animado, gesticulando bastante e elevando a voz sempre que podia. Em seguida, um dos mais velhos o encarava cético e sua voz murchava. Um lamento veio depois, um pequeno gemido e mais palavras sem significado.

Palavras. Quantas ele ouvira nas últimas horas? Dezenas, talvez centenas. Julgou que estava próximo das milhares somente pelo jovem energético e seus gestos infindáveis. Sorriu sem que ninguém notasse, ansiava por aquilo fazia tempo, dias, desde o fim de sua última batalha. Concluíra aquilo somente para desfalecer novamente. Aquelas vozes eram ecos além da compreensão, eram o código daqueles que o perseguiram, a língua do desespero dos seus sonhos, dos esboços dos rostos em chamas, em agonia, consumidos pela podridão que emergia da alma de outros homens. E mulheres e crianças e idosos. Todos assentindo distantes as dores de terceiros, todos esperando pela transformação de pesadelo em salvação.
Com as forças obtidas pelo que lhe deram de comer e beber, arregalou os olhos e fitou as expressões daqueles que o levavam. Sentiu-se um escravo, refém da própria sorte. A mesma que o abandonara desde a última batalha.

"Estarei a salvo amanhã?", pensou. E de novo não respondeu. O coração acelerou sem que percebesse, já que toda sua concentração estava nos ecos além da compreensão. "Oh!", pensou por reflexo ao reconhecer um som similar. "Aquilo foi um 'ann'?", em sua língua poderia significar em, sobre, de. E também significava silêncio. Um aviso? Notara que sua boca estava aberta, com sede de conversa, de diálogo, de compreensão. E então calou-se antes de falar, fechou abruptamente e quase mordeu a própria língua. Nem teria reparado na dor, só queria fugir o quanto antes de qualquer descoberta, fosse dele ou daqueles que o levavam.
Seus olhos cruzaram com os de outro homem, um dos mais velhos, sérios e calados. Esse observava demais, demais. Gelou por dentro. "Ele descobriu!".
A pergunta veio em seguida e ele não entendeu. Não poderia, estava em outra língua. Uma que jamais ouvira antes, a não ser num passado próximo, mas não tivera a menor intenção de aprender. Aprendeu, no entanto, que o fio da espada era rápido e gelado, e silenciava tão bem quanto as noites escuras que lhe tomaram a rota certa para sua terra maldita.

Grunhiu em resposta, mais um eco além da compreensão, até para si mesmo. Todos os olhares se centraram nele e seu corpo se encolheu, incapaz de lutar contra a perigosa atenção daqueles homens. Então mais palavras ecoaram ao seu redor, sem sentido algum. E com elas o vento soprou forte e lançou para longe qualquer oportunidade de reconhecer outra palavra. Para sua cabeça medrosa, todas as bocas diziam "matem-no! Matem-no!". A conversa incessante progredia e o volume das vozes em conjunto só aumentava a confusão. Sentiu o desespero e as lágrimas emergindo de sabe-se lá onde dormiam.

Silêncio. Os homens se aquietaram e, com eles o vento. Junto ao vento, seus pensamentos. A dúvida pairava tão fundo em sua alma que nenhuma idéia do que se passava ocorrera. Haveriam escolhido seu destino? Percebido suas origens? Ele sequer tinha dito algo em sua língua natal? Não sabia nada, nem falar. Não poderia perguntar ou entender a resposta. Só restava esperar.

Esperou mais três dias, dividindo o pão e a água com os viajantes. E quanto mais o tempo avançava, mais reconhecia os desastres da terra, os danos ao solo. Muito daquilo foi provocado por chamas que ele sabia a origem. Era uma das poucas coisas que sabia daquele lugar. Entretanto, ainda assim, não sabia onde estava. Os homens emudeceram no último dia de viagem, principalmente o jovem, estupefato com as consequências para sua terra. A tristeza estava em seu olhar. E ele soube que o jovem jamais perdoaria se encontrasse algum responsável por aquilo. Talvez esse momento não estivesse longe, afinal.
Assim, vislumbrou ao longe a sombra de uma vila arrasada pelas chamas da guerra. Esse era o seu destino, o lugar onde as cicatrizes da terra decidiriam seu castigo?
Não saberia dizer...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Sonho (1) - Andando em silêncio

Com o sol bem acima de sua cabeça, ele tentava contar inutilmente o tempo que estava andando. Em silêncio, claro. Não havia nada para falar, ou sobre o que falar, ou com quem falar. Até mesmo sua mente estava parando de pensar em diálogos. A única coisa que sua mente pensava era em como chegar a salvo, como manter aquele resquício frágil de vida longe da extinção pelo máximo possível de tempo. Portanto, ele caminhava.

Refletindo no fundo de sua alma e outra vez emergindo em seus pensamentos mortos, lembrou-se de como era o lugar para onde se dirigia (ou pensava que se dirigia). A péssima memória o fez franzir a sobrancelha. Se ainda se lembrasse de como conversar teria dito "terra maldita!", mas ainda não lembrava que tinha tal domínio.
Uma vez ou outra produzia um som qualquer com a boca, inconsciente do fato, contudo. Não tinha o propósito de comunicar nada, nem a si mesmo. Sequer uma palavra de ânimo, talvez um "siga em frente, não deve faltar muito mais!" ou "Depois desse trecho, vire à direita e siga por mais um dia".
Dias. Era isso que tentava contar. Sem sucesso, abandonou a frágil idéia e caiu. Estava exausto, sabia disso, sabia que não poderia continuar andando com tão pouca força. Só restava esperar. Talvez por mais alguns dias até que algum viajante entusiasmado com as novidades encontrasse um cadáver numa trilha secreta que servia de atalho entre duas aldeias. "Se eu tivesse ido pela estrada principal, talvez pudesse ser encontrado por alguém", sua mente lhe disse. Ele não respondeu. Nem queria. Queria apenas dormir e sonhar com sua maldita terra diante dos seus olhos.

Ainda poderia ver com nitidez a ridigez de sua terra, o cheiro de adversidade exalando do chão, o sussurro da pobreza nos seus ouvidos. Um arder como fogo incrustado em sua pele pelo sol. Memórias deixadas no corpo, memórias que jamais sumirão. Era assim que seus olhos lembravam de sua terra, maldita terra. Ali estivera com sua família, com crianças, buscando apenas dias um pouco melhores. Aprendera que milagres não aconteciam ali, e que a salvação vinha do modo mais simples possível. A guerra.
Sempre fora assim antes de nascer e deduzia que continuaria assim. Guerra atrás de guerra. Chamas, mortes, terror. Ali estava outra das cicatrizes de sua vida, e o temor surgiu do fundo de sua alma em recordações tenebrosas de um passado próximo. Gritos desesperados, esforço sobre-humano, milagres que nada mais eram que sobreviver. Para cada dia, um desses pequenos e indiferentes milagres. Então veio a luz e com ela, seu despertar.

À princípio imaginou que as vozes eram os ecos dos mortos lhe chamando, mas essa impressão não durou muito tempo. Foi só abrir os olhos e pronto, ali estava o brilho do sol. Outra coisa que ele aprendeu a odiar com o tempo. Houve o tempo em que gostava da lua, mas agora nem isso. Havia se perdido nas noites mais escuras em sua silenciosa viagem e, desde então, passara a odiar tanto o dia quanto a noite.
Em seguida, encontrou os donos das vozes. Os homens estavam por toda parte à sua volta, falando sem parar, gesticulando, animados. Talvez irritados, ferozes, famintos. Ele não sabia dizer. Ele não sabia nada, principalmente o que falavam. A língua era estranha, o sotaque, mais ainda. A pronúncia das palavras ricocheteava em seus ouvidos e não atingia seu cérebro. O mesmo que parou de contar o tempo agora contava os homens.
Eram seis. Grande parte maduros, porém o que estava mais próximo e entusiasmado era jovem e isso era outra coisa que desconhecia. Os jovens eram animados e felizes, mas não em sua maldita terra.
Pouco tempo depois notou que as palavras eram em grande parte dirigidas a ele, pareciam perguntas ou assim soavam aos seus ouvidos. Era o óbvio, perguntar quem era. Saberia responder? Poderiam reconhecê-lo? O medo invadiu-o novamente. Não tinha resposta para aquilo. A sorte não o acompanha desde sua última batalha. Deveria estar morto faz tempo, porém algo parecia brincar com o seu destino, embaralhando suas expectativas uma vez após a outra, sempre desmentindo suas impressões imprecisas do futuro próximo.
Mudo. Foi como permaneceu. Um pio sequer, os olhos levemente arregalados, tão pouco que ninguém percebeu. Não tinha forças nem para esboçar uma careta, um olhar de espanto, um coração acelerado.
Estaria morto se o fizesse, e inferiu que assim seria, entretanto, os homens o ergueram, colocaram-no num cavalo e deram seguimento a uma outra viagem, para outra terra. Uma terra recém maldita que nada lhe teria a dizer.